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A tempestade como a força motriz da mudança

  • Foto do escritor: gritaprojeto
    gritaprojeto
  • 16 de nov. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 2 de jun. de 2022

Por Nina Otaviano


Bom, dessa vez iniciarei a coluna com uma história ilustrativa.


Imaginem uma pequena cidade, na verdade tão pequena que pode ser considerada um vilarejo. Nesse vilarejo tudo é muito bem organizado, as pequenas casinhas ocupam terrenos muito bem delimitados por cercas de todos os tamanhos, e nessas casinhas moram pessoas que trabalham em diferentes ofícios, como contadores de histórias, lavadeiras, professores e entre outros trabalhos comuns.


Apesar de serem vizinhos, essas pessoas não se conhecem direito, ou preferem manter as cercas como muros imaginários que limitam as interações entre eles além do âmbito público, onde obviamente as pessoas precisam conviver a fim de sobreviverem em sociedade. Pois bem, nesse vilarejo até mesmo as ruas são muito bem planejadas para que o risco de problemas sejam minimizados. Até mesmo o sino da única igreja que existe no vilarejo toca em momentos extremamente específicos, sem adiantamento ou atraso de horário.


Certo dia, uma grande ventania se aproxima desse vilarejo, anunciando uma tempestade nunca antes vista. O vilarejo, antes muito bem organizado, se transforma em uma grande bagunça. Os ventos são tão fortes que os moradores são arrancados de suas casas, que antes eram ambientes tão seguros e protegidos. Mas algo incrível acontece, a ventania toma forma, parece empurrar cada morador um para perto do outro, alguns dizem que poderia ser essa uma manifestação de Iansã, a Orixá senhora dos ventos. As correntes de ar parecem enlaçar cada um dos habitantes de tal forma que são obrigadas a se juntarem em uma pequena praça no centro do vilarejo.


Quando todos os habitantes já se encontram reunidos nesta praça, a ventania cessa. O vilarejo está destruído e tudo que resta são os seus habitantes amedrontados e reunidos no único lugar onde a ventania não atingiu. O silêncio após a ventania é tão gritante que seria possível ouvir um alfinete caindo no chão.


Então, após um curto intervalo de tempo, as pessoas se dão conta de que estão frente a frente com os vizinhos que se esforçaram tanto para manter distância no dia-a-dia, e então uma grande briga se inicia. Discussões de todo o tipo surgem, desde culpabilização por um evento incontrolável, como essa ventania, até as mais esdrúxulas coisas, como a forma de se vestir daquela vizinha vaidosa que morava na casa mais colorida do vilarejo. E a briga perdura por dias, a ira é tanta que os habitantes se esquecem de que precisam reconstruir o vilarejo que antes era a casa que habitavam coletivamente.


Após uma semana de longos confrontos, mágoas, muita raiva e até mesmo lágrimas coletivas, os habitantes se cansam de apontar dedos e finalmente baixam a guarda. E é a partir daí que conseguem enxergar em si e nos outros os defeitos e qualidades que antes, impedidos pelas cercas, que na verdade eram muros, eles não conseguiam enxergar. Agora é possível enxergar os erros e os acertos de cada um, é possível enxergar que existem coisas que fogem sim do controle, e até mesmo enxergar e compreender quais foram os erros cometidos durante a estruturação do vilarejo que culminaram na destruição completa do ambiente onde antes eles habitavam tão confortavelmente.


As coisas então se acalmam, as pessoas respiram fundo, e decidem juntas reconstruir um novo vilarejo, onde as casas possuem maior estrutura para enfrentar temporais. Além disso, concordam também em estabelecer no vilarejo um sistema comunitário mais harmônico, no qual existe conversa, diálogo e compreensão. Enfim, tudo novo, de novo.


Essa história, que eu acabei de inventar, diga-se de passagem, é uma forma lúdica de contar sobre um processo que todos nós passamos, em maior ou menor grau, durante a nossa vida e também durante o nosso próprio amadurecimento como seres humanos. O processo da mudança de ciclos, ou términos de ciclos, ocasionados por uma grande desorganização da realidade que antes era tão confortável para nós.


Traduzindo, essa tempestade pode ser o término de um relacionamento, seja ele amoroso ou não, uma demissão inesperada, a morte de um ente querido ou uma pandemia que te mantém isolado em sua própria residência por dois anos inteiros. Enfim, qualquer evento inesperado que abala profundamente o nosso jeito de ser e obriga nossas pequenas certezas, ideias e conceitos a se confrontarem de uma só vez. Geralmente é um processo muito doloroso, muito turbulento e sinceramente muito chato.


Quando somos chamados a reavaliar nossas vidas e nossos próprios caminhos, é sempre mais fácil apontar dedos, procurar culpados ou até mesmo criar um chicote imaginário para nos martirizar por erros que foram cometidos há muito tempo e que hoje refletem na nossa realidade. Eu mesma, após passar por um término de relacionamento amoroso, me vi nesse momento de introspecção que me fez reavaliar tudo aquilo que eu enxergava como organizado e bem estruturado na minha vida. Eu me culpei, me julguei, discuti com as ideias e conceitos habitantes da minha cabeça por semanas a fio. E eu chorei também, muito. No entanto, somente quando eu baixei a guarda e consegui enxergar erros e acertos, pontos de melhoria e até mesmo aqueles aspectos que eu poderia me orgulhar da minha história, é que eu pude finalmente dar as mãos para mim mesma, e iniciar um novo ciclo. Tudo novo, de novo.


Por fim, desenvolver a capacidade de renascimento e reconstrução após um grande abalo em nossas vidas pode se tornar uma ferramenta importante para o trabalho de melhoria pessoal de cada um. É sim muito difícil passar por términos ou situações tão complicadas quanto, mas a elaboração psíquica dessas experiências pode se tornar mais fácil quando enxergamos na tempestade a oportunidade de melhoria e reorganização de um vilarejo interior que por algum motivo não estava mais funcionando. Sempre é possível recomeçar e agradecer pelas lições que foram aprendidas somente nos momentos mais difíceis da nossa vida. É importante reconhecer que os ventos de Iansã são a força motriz para a mudança, ainda que muitas vezes nos tire dos eixos e nos deixe temporariamente desorganizados, e a partir dessa reflexão conseguiremos buscar finalmente uma nova calmaria e quem sabe novos caminhos mais prósperos e felizes.


Axé povo! Que Iansã continue sempre nos abençoando e trazendo com os ventos as mudanças que precisamos para evoluir. Eparrey Oyá!


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