Por Nina Otaviano
Acredito que muitos de vocês devem ter percebido o quanto eu gosto de contar pequenas histórias para introduzir os textos da coluna. E dessa vez não será diferente, então vamos lá!
Certo dia, após uma longa semana estressante, fui ao terreiro para tomar um passe e conversar com os guias da casa que atenderiam durante a gira - para quem não conhece, uma gira, na Umbanda, é uma reunião mediúnica, na qual médiuns incorporam espíritos de alta evolução a fim de auxiliar as pessoas que participam da reunião. Naquela sexta-feira no terreiro teria Gira de Preto-Velho, e, apesar de estar feliz por poder ser atendida por essas entidades que tenho tanto apreço, eu me encontrava em um estado de nervos daqueles!
Retornando um pouco na linha do tempo, para contextualizar vocês, algumas semanas antes de ir ao terreiro, eu tinha enfrentado inúmeros problemas na vida pessoal, acadêmica e profissional, e muitos desses ocorridos, na verdade, estavam fora do meu controle. No entanto, por conta da minha auto cobrança excessiva, eu mesma estava me culpando por questões que simplesmente eram impossíveis de serem controladas e até mesmo erros decorrentes do meu próprio desconhecimento do que poderia ter sido feito para a resolução de vários conflitos.
Pois bem, eis que estou aguardando a minha vez de conversar com um dos vovôs - chamamos carinhosamente de Vovô e Vovó os Pretos-Velhos, pois eles são espíritos que se apresentam como senhoras e senhores pretos, que viveram durante o período escravocrata no Brasil e, após passarem por essa existência de muito sofrimento, alcançaram um caminho de evolução tão grande que hoje são capazes de trabalharem como guias espirituais da Umbanda- e sou chamada para me aproximar e sentar em um banquinho, e logo o Vô diz com o típico linguajar “Ei Zi fia, tá tudo bem com ocê?” e eu, o com os ânimos a flor da pele já disparei a falar sobre os inúmeros problemas que tinha enfrentado e principalmente que eu mesma não conseguia me perdoar por ter cometido erros no meio de toda a situação.
O Vô ouviu pacientemente tudo o que eu tinha que dizer, e com a serenidade de quem já viveu uma eternidade, me disse: “Zi fia, a gente não tem que ter compromisso com o erro, temos compromisso com o acerto! Eu já errei muito na minha caminhada, e é isso que me trouxe aqui, depois de morto, pra trabaiar ajudando ocês. Errar é do humano, se fosse perfeito, não era desse plano”.
Bom, após aquele momento e depois de ouvir mais algumas sábias palavras do Preto-Velho, eu comecei um processo de reflexão que me motivou a, inclusive, escrever esta coluna. Foi a partir das palavras de um espírito, que já conheceu as duras penas da escravidão e o quão profunda pode ser a humilhação infligida a outro ser humano, que eu compreendi os motivos pelos quais eu, e muitos irmãos negros, muitas vezes nos vemos compromissados com os erros.
Veja bem, desde muito novinhos somos ensinados a nos portar de forma que não sejamos um incômodo para ninguém, nem a escola, nem os amigos, nem a igreja e MUITO menos a branquitude. Não é raro encontrar crianças negras sendo severamente e, às vezes, duplamente castigadas por conta de erros que, se fossem acompanhados de uma pele alva, seriam facilmente perdoados. Nesse sentido, somos inconscientemente ensinados que o erro, além de ser um motivo de vergonha e humilhação, só é aceitável ou tolerável se for acompanhado de uma pele branca. Assim, é muito comum encontrar hoje, adolescentes, jovens e adultos negros que temem errar por saberem que o erro terá um peso muito maior sobre os nossos ombros. E se errar é humano, então desde novinhas as nossas crianças negras entendem que o fator humanidade está alheio a nossa existência. Compreende onde quero chegar agora?
É possível observar essa questão nos mais diversos âmbitos da vida cotidiana de uma pessoa negra. Desde o cuidado com não entrar com bolsas dentro de lojas e supermercados, até a cobrança exagerada para ser um modelo de excelência negra onde quer que estejamos inseridos, tudo isso parte também desta posição da impossibilidade do erro. Quer mais um exemplo, daqueles escancarados? Observe o quão rápido um artista negro pode sair do lugar de endeusamento para o total ódio popular a partir de um erro, ou até mesmo de um comportamento mal interpretado.
É nessas horas então, após refletir um pouquinho sobre os motivos mais profundos que me fazem ter medo de errar - para além da minha história estritamente pessoal - que eu compreendo a importância e a sabedoria sublime de um Preto-Velho, uma vez que se essas entidades que já foram extremamente desumanizadas durante a escravidão , conseguem encontrar a humanidade nos seus próprios erros, eu também sou capaz de tomar para mim a humanidade que muitas vezes me foi tirada e compreender que eu também posso errar, assim como você, seja branca, preto, pardo ou amarelo!
Afinal, o erro não tem cor, mas ele tem humanidade! E você, pessoa preta, também é um ser humano! É preciso que nos relembremos disto a cada momento em que o racismo tente nos tirar o nosso direito de viver como seres humanos dignos e principalmente voltarmos nosso olhar para a nossa ancestralidade, para que possamos entender que somos frutos de muitos erros e acertos que possibilitaram a nossa própria evolução como seres humanos.
Termino por aqui minha pequena reflexão do mês!
Saravá, meus leitores do Grita!
Que toda a força ancestral abençoe vocês e permita que cada um encontre em si a humanidade necessária para ser benevolente consigo mesmo, até nos piores erros!
Comments