Por que falar em suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual?
- gritaprojeto
- 10 de ago. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de set. de 2021
por Laura Costa

Essa coluna é sobre um tema que está em alta, mas que sempre despertou grandes paixões. Diria até que, historicamente, foi alvo de muito preconceito e desconhecimento. Apesar de viver em um mundo globalizado, com interações múltiplas e instantâneas entre os países que muitas vezes dão a impressão que vivemos em uma grande comunidade global como cidadãos do mundo, a verdade é que vivemos rodeados de barreiras e fronteiras territoriais, culturais e políticas. Pensar a disposição do mundo com base em fronteiras é analisar a configuração de poder que existe ao redor do mundo em que cada país defende seus interesses nacionais.
No final de 2019, o mundo descobriu um vírus que deu origem a uma pandemia que, até hoje, está presente em nossas vidas. A circulação de pessoas e interação entre os países promovida por esse mundo globalizado fez com que o vírus percorresse os quatro cantos do mundo de maneira muito rápida até chegar no ponto em que estamos hoje: mais de 3,5 milhões de mortes por COVID no mundo.
Temos uma crise sanitária global e uma solução comum chamada vacina. Para além de medidas de distanciamento social e uso de máscaras, a principal solução de combate ao vírus é a vacinação coletiva. Investimentos em pesquisa e tecnologia cresceram muito no último ano permitindo que tivéssemos diversas vacinas disponíveis para população mundial em tempo recorde.
Quando pensamos em investimento e riquezas ao redor do mundo, entramos em contato com a temática da desigualdade do sistema internacional entre países ricos e pobres. Consequentemente, a capacidade desses países de lidar com a crise, adquirir testes, máscaras, equipamentos hospitalares e vacinas são díspares.
Daí alguns podem pensar: cada país que lide com seus problemas. Não é bem assim, estamos falando de uma crise global, coletiva. Vacinação, por sua vez, também é estratégia coletiva. Por isso, precisamos falar em revisão de patentes! Antes de entrarmos propriamente nesse tópico, vou reforçar aqui três grandes princípios básicos para estarmos alinhados:
Vacinas são hoje a principal solução para resolução dessa crise;
Vacinas são hoje a principal forma de retomar a economia mundial;
Vacinação é imunização coletiva.
Estamos inseridos em um cenário de escassez de vacinas onde há muita gente para poucas doses. A vacinação ao redor do mundo diante dessa escassez também é desigual. Mais da metade dos adultos do Reino Unido já tomaram a primeira dose, por exemplo. As vacinas são protegidas pela propriedade intelectual, um conjunto de leis que garantem exclusividade para exploração comercial das farmacêuticas. Ainda no ano passado, Índia e África do Sul começaram um movimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), para quebrar as patentes, o que tornaria as vacinas mais acessíveis para os países pobres. Quebrar as patentes, nesse momento, é sinônimo de reduzir desigualdades e acelerar a vacinação mundial.
Ainda com o investimento privado na vacinação que temos visto, é importante pontuar que o investimento público supera o privado em três vezes no mundo. A vacina, dada a realidade que estamos inseridos, é um bem comum e global. Historicamente, com outros tipos de vacinas, vimos que os países ricos tendem a vacinar mais rápido. Esse argumento foi a base de discussão no âmbito da OMC para a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual.
Do ponto de vista diplomático, o acordo TRIPS é o responsável por reunir as regras e negociações a respeito de patentes ao redor do mundo. É esse tratado que prevê a obrigatoriedade de vinte anos garantidos pelo Estado para exploração comercial de determinado medicamento, onde nenhum outro competidor pode entrar no mercado. O próprio tratado reconhece que esse monopólio deve ser revisado diante de uma grande ameaça à saúde pública como a que estamos agora.
O argumento prático desses países é de que existe capacidade ociosa ao redor do mundo para produção de vacinas, reagentes, kits diagnósticos, remédios, respiradores. Há produtores qualificados que poderiam ampliar essa escala de produção gerando menores preços e mais fornecedores para que os países adquirissem vacinas. Países como Estados Unidos e alguns membros da União Europeia se posicionaram previamente de forma contrária a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual. O Brasil também se posicionou ao lado desses países contrários, indo na contramão da nossa história diplomática. Nas últimas décadas, o Brasil liderou debates em fóruns multilaterais sobre inovação e patentes farmacêuticas, combatendo a desigualdade mundial no acesso à saúde, além de fazer parte do grupo que liderou a resistência ao acordo TRIPS na década de 90.
A posição atual do Brasil é um retrocesso para a política externa brasileira que prejudica, em termos pragmáticos, a sua própria população, além de prejudicar outros países em desenvolvimento que precisam de diversificação de fontes de vacina nesse debate da diplomacia da saúde.
Em maio de 2021, a esperança sobre esse tema ganhou força com a declaração do presidente dos EUA Joe Biden a favor da quebra de patentes, caso ela fosse aprovada na OMC. Em seguida, a China e alguns países da União Europeia também mudaram seus posicionamentos e se declararam favoráveis ao debate.
Há um argumento, que deve ser questionado a respeito desse assunto, que afirma que ao retirar a patente sobre determinado medicamento e o direito exclusivo de alguém lucrar com ele, isso reduziria a margem de novas descobertas científicas. Historicamente, não foi bem isso que aconteceu: o número de patentes cresceu muito e o número de medicamentos realmente inovadores não aumentou tanto assim.
Não existe uma patente para cada medicamento, hoje as empresas cercam de todos os lados um medicamento com centenas de pedidos de patente que na verdade não são uma inovação de fato. A patente, nesse cenário, acaba por criar uma falsa escassez e uma maior aplicação de preços.
Estamos no meio de uma pandemia e existe (ou deveria existir) no mínimo um imperativo moral de compartilhar conhecimento pela vida das pessoas. Para avançarmos como comunidade global, o lucro a partir da morte das pessoas definitivamente não pode ser uma opção. Dito tudo isso, é possível afirmar que as patentes são hoje o principal empecilho para a vacinação mundial e quebrá-las significa lutar por um mundo mais justo, menos desigual, com direito a vacinação universal: sem distinção de nacionalidade, religião, orientação sexual, classe ou opinião política.
Vem, vacina!
Laura Costa
Referências:
5 pontos para entender a quebra de patentes das vacinas contra COVID-19. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/22/5-pontos-para-entender-a-quebra-de-patentes-das-vacinas-contra-a-covid-19 - Acesso em 02 de junho de 2021.
O mundo deve quebrar as patentes das vacinas? Disponível em: https://open.spotify.com/episode/02L90qRSqxYO2FxzC0BVuE- Acesso em 07 de junho de 2021.
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