por Juliana Romagnoli
Há 1 ano e meio sou confrontada com a perecibilidade da existência. Da minha. Da sua que me lê. Da de quem sequer me conhece. Daqueles que pouco ligam para esse tipo de preocupação. Esse 1 ano e meio custou-me equilíbrio emocional e dissabores. Apesar e por causa disso, escrevo. Sei que escrevo do alto do meu privilégio branco e das vantagens sociais decorrentes de tal condição, contudo, mesmo a fruir disso, em todo o momento da pandemia, pensei naqueles que não puderam parar porque estão nos coletivos lotados, nos balcões de supermercados, servindo-nos. Pensei nos que morreram asfixiados por desassistência governamental criminosa. Pensei nos moribundos desamparados em corredores de enfermaria longes de rostos amigos. Assim, a frase de Oswald de Andrade, parafraseada, é ópera na minha cabeça "O Brasil é uma república federativa cheia [...] de gente dizendo adeus", ou seja, o que fiz/faço/farei não é suficiente.
Ainda que lúcida dos meus braços curtos frente às ações que, de fato, surtiriam efeito no morticínio em curso, reservo-me o direito ao vômito verborrágico, tendo em vista que - fora daqui e nesta rede - a dos sorrisos falseados e da realidade plástica, sei que fiz a minha parte no pacto de coletividade, que prevê ceder liberdades individuais em prol das demandas comunitárias. Propaguei a consciência acerca das medidas de segurança e a reflexão atinente à responsabilidade social que nos cabe. Segui à risca o isolamento, amigos. Desconheço, todavia, panaceia para o obscurantismo pernicioso do outro. Camus, em A Peste, corrobora essa afirmação "Não há verdadeira bondade, nem amor verdadeiro, sem toda a clarividência possível". E vai mais além: "O homem não é ruim por natureza, mas seu conhecimento das coisas é deficiente. Seus atos mais nefastos vêm da ignorância". Com todo o respeito ao canônico autor, destaco que não é só a ignorância a fazer estragos. Há uma combinação vil de indiferença, de individualismo, de amoralidade, de mau caratismo.
Similarmente ao que ocorreu com milhares de brasileiros, a vacina chegou tarde. Meu marido, de modo diferente de mim, não pôde parar, uma vez que trabalha numa dessas empresas dinossáuricas e mercantilistas (qual não é?), que não se importam se o ambiente profissional é insalubre, que não se atentaram ao óbvio ululante de que as dinâmicas laborais estão em processo de mudança e que há ofícios que podem, sim, ser realizados a distância, sobremaneira numa pandemia. "Danem-se", eles pensam. O funcionário é apenas peça na engrenagem desse rolo compressor de vidas que tira um pedaço, paulatinamente, da sede de existir a cada fim de expediente. E, pasmem, romantizamos, e enaltecemos, e agradecemos isso.
"Esse pessoal" pode ser substituído. Os de cima, ou os que se consideram acima, usam essa expressão entre aspas com recorrência, já repararam? E foi dessa forma que, certamente, o vírus nos atingiu, uns dias antes da nossa data de vacinar, pela negligência e pela indiferença “humana”. Ironia machadiana? A pedra de Drummond, castigo divino? Provações para o evoluir? Alguém bem obstinado com meu boneco de vodu? Será a tal mochila com chumbo que sustento, desde tempos longínquos, como a esfera de Sísifo, que carrega o peso numa penosa ladeira para se precipitar no vazio? Ainda não compreendo. Não alcanço também o que sinto no momento em que escrevo este texto-desabafo. É dúbio. Parece-me um sentimento de vazio, embora esteja feliz pela melhora do meu parceiro de caminhar. Um sentir esvaziado com dose forte de entorpecimento, tal qual o poeta fingidor bem descreveu. "No teu olhar eu leio/ O íntimo torpor/ De quem conhece o nada-ser/ De vida e gozo e dor".
Nós dois, que dividimos a vida há 20 anos, fomos separados da maneira mais dolorosa possível. Eu não pude despedir-me dele no momento em que o levaram para o "Setor de Internação Covid". Devastador. Seria uma sentença de morte, considerando os números diários de óbitos? Ademais, enfrentar a situação remeteu-me à experiência pretérita com a minha mãe. Também fui obrigada a deixá-la, sem despedida, sem certeza de volta. E ela não retornou.
Quanto a mim e à doença propriamente dita, o vírus foi mais "gentil". Não precisei de oxigênio, não tive a função pulmonar comprometida, como ocorreu com Ricardo. Acontece, entretanto, que já estávamos numa espiral de esgotamento. Os dias anteriores foram escuros. Vá ao hospital. Volte para casa. Medique-o. Nada surte efeito. Saturação 92. Saturação 88. Saturação 83. Saturação 81. Falta de ar. Iminência da morte seca. Volte ao hospital. Internação. Pânico. Desespero. Desalento. Raiva. Impotência. Impotência. Impotência. Queda livre.
Ele foi levado de mim. Já pensaram em como a Covid é paradoxal: é a peste da coletividade e do isolamento, ao mesmo tempo. E sobre esse contrassenso da apartação compulsória posso dizer que meus dias de doença foram física e emocionalmente atormentadores, porque meus demônios internos emergiram e rostiraram minha face já derretida na terra agreste, mais de uma vez. Os dias intermináveis do meu marido na "Ala da morte", imagino e reproduzo a aflição dele, foram parecidos com a passagem pelo Rio Tibre, do Purgatório de Dante, em que há a expectativa do próximo nível a vir. "Acordarei? Recebo ar suficiente nos meus pulmões? Serei reduzido a dados na planilha de estatística do (des) governo? Serei uma das 550 mil vítimas?" Estas, padecentes de uma doença que tem imunização e que, repito, chegou tarde para nós dois e para milhares de Ricardos e de Julianas. Sim. Os mortos e os doentes têm nome. Têm histórias.
Enquanto a minha vida foi pausada, a gente quer que a do outro pare também para a nossa dor. Que tolice pueril. A vida continua nos "stories" de existência perfeita imune ao sofrimento e nos outros espaços. O mínimo que se espera, entretanto, é o coleguinha do lado se preocupar (ou fingir preocupação e respeito) com a crise sanitária instalada, com o adoecer do vizinho. O que vejo? Festas, compra clandestina de convites para eventos, aglomerações postadas sem o menor pudor, não uso de máscaras, imbeciloides que gritam "mito" e que vociferam merda pela boca e por todos os podres orifícios de um interior igualmente putrefato. É só casca, meu povo. Não vejo gente. Vejo agentes transmissores do vírus e disseminadores da tragédia nos lares alheios. “A estupidez insiste sempre”, segundo Camus, hei de concordar.
E agora? Eu me pergunto. A batalha não terminou com a tão ansiada alta médica e com a doença debelada. Há muito pela frente porque o vírus segue ceifando vidas. E os CUIDADOS CONOSCO e com os OUTROS CONTINUAM. Recebi a benesse de ver meu marido em franca recuperação física, e eu lambo as feridas advindas da imposta condição de vulnerabilidade que expôs minhas entranhas e que me impele - mais ainda - a GRITAR pela preocupação com o outro.
Acredito na "lei do retorno". Neste momento, tenho travado uma luta interna arduíssima entre resignação, gratidão a Deus, à espiritualidade, aos que foram suporte e que tanto me ampararam e entre indignação e desejo de que cada um dos propagadores de doença e de morte recebam uma dose de experiência semelhante. Estão a me julgar por tal aspiração? Hilda Hilst talvez dissesse: "Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-me de novo [...] Olha-me de novo. / Com menos altivez./ E mais atento".
Calcem os meus sapatos, os do meu marido, os dos familiares dos que também adoeceram e, por fim e mais importante, os dos entes queridos daquelas 550 MIL PESSOAS que nunca mais voltarão para o abraço de seus amores. A última toalha usada está lá. Os óculos de leitura, o livro preferido, o cheiro ímpar do perfume ou da loção de barbear, a escova de dente molhada, a roupa de cama amarfanhada pelo corpo que outrora esteve presente. Mas quem se importa com "gente dizendo adeus"? Eu me importo.
Emocionante!!! Claro que chorei. Este garoto Ricardo tem muita sorte. Você é sensacional.Eu também importo.B
Ju, que texto mais potente! Não consigo expressar o que eu sinto nesse momento. Perdi minha madrinha, minha segunda mãe, pro Covid e ate hoje é uma realidade tão difícil de suportar!
Fico tão grata que Ricardo consegui sobreviver e tenho certeza que logo ele estará como antes, sendo o menino enchaqueca que você tanto ama!
Amo você demais, Ju!
Sempre juntas!
Um beijo,
Bel ❤